terça-feira, 31 de outubro de 2017

Estava sossegada. Gosto de estar sossegada, absorvida no meu mundo autista e porque não? Nunca imaginei que este mundo tão meu fosse tão confuso para quem me rodeia... Todos nós sem excepção vivemos num mundo à parte dos demais, chama-se intro-especção, um casulo fechado onde reina somente a nossa imaginação! Gosto do mundo em que vivo, é meu, confesso que sou egoísta neste meu querer, de fora ficam as realidades que habitualmente consomem o ser humano, também o sou, humana. Não há forma plausivel nem descrições possiveis que abordem o mundo interior. Parte de uma aceitação própria, de uma realidade inconstante, cercada de movimentos tão estranhos mas gratificantes que se transformam numa adrenalina impossível de largar... Gosto de estar sossegada num desassossego permanente que me permite atingir as barreiras impostas pelos outros, alcançar a utopia das irrealidades... Sou eu, tanto falo sobre o meu eu, porque não? Eu e ele somos indivisiveis, não permitimos intrusões, somos uma partilha única e indestrutivel... O desassossego com que me movo é a prova constante de um crime só meu, não existe clausura nem código penal capaz de o condenar...Sou eu, sossegada na minha inconstante tranquilidade em que o constante não é mais que uma fracção de segundos até que a Utopia seja alcançada!
( Reservados os Direitos do Autor Lina Freitas)

domingo, 1 de outubro de 2017

Torcer o pipo

O meu pai torcia o pipo aos pombos, que eu bem me lembro. Mas não que os bichos o enervassem. Acontecia quando eles começavam a ser mais que muitos e a despesa se tornava incomportável ou então porque o pombal estava a ficar demasiado apertado. Eram fritos fritos em azeite, cebola, alho, uma folhinha de louro, refrescados com um pouco de vinho e, depois de tudo bem cozinhado, acrescentava-se um ovo ou dois. Era bom. A carne era escura e densa, muito gostosa. Mas vamos à torcedela de pipo. Eu não suportava ver o meu pai extinguindo a vida dos bichinhos, ver toda a cena afligia-me. Mas conheci o aparato. Lembro-me de vê-lo de costas, os braços tensos, adivinhava-lhe as mãos torcendo o pescoço, pressionando a veia jugular. Eu já só via os cadáveres em cima do muro, cabeças pendendo, olhos meio fechados, o corpo inerte. Ali por perto já havia um alguidar. Depois era escaldar, depenar, amanhar. Nestas tarefas eu ajudava um pouco. Gostava particularmente daquela parte em que o meu pai limpava as vísceras, ver a moela ser cortada e saírem de lá pedaços muito miúdos, mesmo desfeitos, de milho e outros cereais. Depois era a vez de a minha mãe tratar do resto, como já referi acima. O leitor não pense que me fazia impressão comer pombinhos, imaginando-os queriditos e fofinhos como se fossem bebés amorosos e com essa visão alguma tristeza me assolava a cabecita. Não. Afinal de contas eu ajudava (ou vigiava atentamente) na limpeza e preparação destas aves. Comia e pronto. Protegida pela lei da vida, talvez... A ordem natural das coisas, quiçá... Mas não me vejo a torcer pipos, lá isso não.



Gina G


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Naquele Cais



Morri de tanto esperar...
Onde marcaste o encontro, do nosso desencontro!

Sentada naquele banco frio
Olhando para o vazio
Vejo-te em tudo o que passa
Mas quem passa não és tu!

Porque me deixaste só?

Neste silêncio que gela
No meio de tanta gente
Só tenho por companhia
As imagens que eu queria
Da tua presença ... ausente!

De coração apertado 
E com um nó na garganta
As lágrimas molham-me o rosto
Levanto-me do banco frio
Retiro o olhar do vazio
E parto para o lado oposto

E agora sem destino
Vou por aí, não vencida
Meio perdida, por ti esquecida
Continuarei a procurar-te
Um dia hei- de encontrar-te
Em qualquer um Cais... da vida!

Teresa Lino Vicente


terça-feira, 29 de agosto de 2017

O menino perdido

Durante a noite, o menino levantava-se da cama. Caminhava pela casa vazia e às vezes cismava frente às janelas que pensava terem ficado abertas de par em par. Todos os dias era o mesmo. Deixava tudo aberto porque se sentia abandonado. Era uma casa grande, repleta de quartos e corredores intermináveis. Como criança que era, erguia os olhos ao céu e à noite e escutava lá fora o pranto dos campos. Escutava os grilos e as cigarras e julgava-os gambozinos. Nessa noite o menino olhou pela janela com os olhos muito abertos e tudo era uma escuridão enorme por não se saber onde terminavam aqueles frutos tão noturnos da vida. A casa também chorava com ele. Toda aquela casa envelhecia durante o tempo e por dentro o menino agastava-se com o seu próprio silêncio. Trazia em si aquele choro das magnólias e das hortênsias, vergadas sob o seu próprio peso, que já pendem para a terra. Aquele mesmo choro dos presentes nunca oferecidos, daqueles presentes para sempre esquecidos, para sempre ausentes no amor. O menino repetia para consigo mesmo: «um dia morrerei», e voltava a repetir: «tudo isto que eu vejo é transitório, todo este nada que eu sou é absolutamente transitório». E inclinava-se cada vez mais para o silêncio; e no seu coração mais cansado, a morte, terna mas petulante, aconchegava-se no seu peito como se fora o tão ansiado abraço do amor.

Jorge Rebelo

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Aquela pessoa

Há aquela mulher que foi à baixa e veio de metro para cima. Viajas frente a frente com ela e olha-la com curiosidade. Tem pousado no colo sacos de grandes casas, de lojas antigas. Lojas do tempo em que se chamava casas às grandes lojas. Nos sacos estão impressas as datas 1860 e 1923. Hum, casas muito antigas, sim... O ar compenetrado que ela apresenta é o de uma mulher que quer ser uma senhora, olha para o chão com altivez. Olhar para o chão com altivez é um contra-senso porque olhar para o chão revela timidez, pensas. Tu achas que cada mulher é uma senhora e vice-versa, não compreendes este querer parecer. Já doutros quereres entendes tu. «Din-don» soa a coluna de som do metro chamando à razão quem quiser sair na «Próxima Estação». A mulher/senhora/mulher levanta-se debaixo do mesmo olhar altivo, agora fita o vazio em frente. É que se aquela mulher/senhora/mulher não quer ir de encontro às coisas e arranjar nódoas negras é melhor levantar a cabeça, ao menos. Saiu. Oh que pena, nada mais há de interessante para veres.
Gina Grangeia

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

C
Cartas de amor
A mais bonita carta de amor que um dia poderia receber… "És um anjo, daqueles que não precisa de ter asas branquinhas como tantas vezes imaginamos!" Uma perfeita carta de amor me escreveste. Confesso uma coisa: imensas cartas de amor me foram enviadas por muitos seres de luz, mas tenho duas gravadas no mais profundo de mim. A tua e a de outro coração que não o meu, mas que sinto como tal! “ Cartas de amor quem as não tem!” Há quem as escreva nas linhas do tempo, escrevem-nas com gestos, ou também podem escrever com um simples olhar, ou preferem simplesmente falar… Como sabes, sou um misto de todas essas luzes, escrevo as minhas palavras na presença do luar! Não faço rascunho, já para nem me enganar. Escrevo vinda lá dos meus céus, trago alento à minha dor, escrevo com a ânsia do amanhã, de me ser permitido acordar! Escrevo com sentido ou sem ele, tento imitar-me ao me ler. Queria e vou querer sempre que a minha escrita seja uma constante nos confins do meu ser! Amo escrever, mais ainda o que escrevo e aquilo que ainda nem escrevi… enquanto escrevo, navego dentro de mim, neste mundo tão próprio e de tal maneira absorvente que me faz acreditar que estou aqui e agora! São rabiscos, são meus, sou eu...
( Reservados os Direitos do Autor Lina Freitas)

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Poente outonal

Assim vou aparentando a fantasia,
Neste final de tarde de um dia vulgar
Sem algo singular que valha a alegria
Destes versos que me apraz cantar;

Sou rolo de fumo, astro perdido,
Um vapor nulo de inspiração
Com a fé militante do poeta agradecido
Num dia a mais, sem celebração;

E dou-me todo neste poente outonal.
Sou espasmo de luz, brisa dos oceanos,
Aquele que define o capítulo final:
Acabar floricultor num bosque de enganos; 

Vivo há muito com o ensejo de não escapar
A enigmas que tanto me seduzem
Mas vou contendo-me, extraindo fôlegos do ar
Sonhando... sempre que as estrelas fulgurem; 

Amanhã, de novo espreguiçarei ao alvor
Esta vontade que reputo salutar,
Rendido ao melífero clamor
Desta crença por mim aberta de par em par.

Jorge Rebelo

terça-feira, 15 de agosto de 2017

A rapariga do lenço à pirata

Já há muita gente na sala e ainda há pouco a manhã começou. Tira uma senha e diz bom dia ao rapaz que está atrás do balcão. É um moço bem parecido, bastante novo, tem dois piercings, um no nariz, outro na sobrancelha esquerda. É um funcionário diligente, simpático e muito educado.

Ele recorda que, quando era jovem e saudável, também ele era belo. As pessoas olhavam-no na rua e as raparigas, quando seguiam em grupo, viravam a cabeça para trás e davam risadinhas. Ele corava e seguia o seu caminho, lesto, com os olhos ainda mais firmes no chão.

Senta-se numa cadeira vaga, com a senha número setenta na mão e dispõe-se a aguardar a chamada. Pela primeira vez olha com mais atenção em seu redor. A numeração ainda vai nos cinquenta e pouco mas as funcionárias das análises trabalham rápido a extrair a seiva vital. O numerador eletrónico avança com rapidez, à razão de um número por cada três minutos. Ele cronometra o tempo e tenta calcular quanto falta até chegar à sua vez.

Aflige-se com o cenário que o rodeia. Há tanta gente doente! Será que os que estão neste momento lá fora, longe deste ambiente insano, os que ainda trabalham, sorriem despreocupadamente, divertem-se, amam, conduzem a velocidades estonteantes e espreguiçam nas esplanadas da cidade, pensam que vão ficar eternamente sãos, como se fossem deuses? Saberão eles que as coisas não são assim? Que a sombra da morte surge sempre algures numa curva da vida...?

Não param de entrar mais pessoas no espaço cada vez mais atulhado. Os funcionários continuam simpáticos, calmos e diligentes para com os pacientes, como se estivessem a atender clientes numa loja comercial. Ele fica contente por ver que, afinal, as mentalidades sempre mudam; que os jovens trazem uma mais valia aos serviços públicos, devido à sua maior instrução e diferente postura.

Quer relatar o que está a acontecer diante dos seus olhos, ele que é um vulgar utente de um hospital. Aqui não há doutores nem engenheiros, ricos ou pobres: são todos doentes e carecem de tratamento.

Sofrimento é: olhar para o canto da sala e ver uma rapariga – não terá mais de vinte e poucos anos – magricela, a pele como um pergaminho, num rosto de olheiras cavas, como duas fundas negras, expandindo um olhar tristonho, vago, como se fora uma lâmpada apagada.

Acompanham-na os pais. Ampara-se no ombro da mãe. Andar é um custo. Tudo é um custo. O pai carrega, dentro de envelopes acastanhados enormes, os cardápios dos exames, das radiografias, dos tacs, das ressonâncias magnéticas – ele receia que tudo não seja senão um périplo de notas negativas, más notícias, chumbos nas disciplinas vitais à continuação da saúde, da vida, daquela rapariga tão jovem. A rapariga aparenta um estado irremediável.

Ele quer, sobretudo, evadir-se desta visão que o obriga começar a pensar. O lenço às flores. O lenço que ela usa na cabeça, enrolado à moda dos antigos piratas que dantes povoavam o mar das Caraíbas. Um lenço posto de modo tão simples. Um símbolo. O símbolo da quimioterapia.

As coisas de que ele mais gosta são, não necessariamente por esta ordem: os livros; a escrita; as artes; as flores; o campo; o mar; os rios e toda a água corrente; a fruta deliciosa que cai madura das árvores; a brisa que sopra suave no final da tarde; as horas na relva a ver o céu, sonhando; amar e ser amado. Gosta de beijar e ser beijado. Disso gosta muito.

É fácil desviar o olhar. Fixá-lo no branco das paredes, abrir o livro fininho que sempre transporta na mão. Dar uma mirada no final da novela, apaziguando uma curiosidade irreprimível. Olhar repetidamente os ponteiros do relógio, para nada. Remexer no telemóvel, como se fosse um tique e apagar mensagens e chamadas perdidas que já nada significam. Apagar alguém, desse modo, seria fácil. A morte, afinal, mais não é do que uma súbita falha de luz, de energia.

Fecha os olhos. Sempre detestou agulhas. Sente a picada. Dói. O que é a dor? A dor é subjetiva e ninguém a sente do mesmo modo. Ao seu lado há mais lenços de pirata. Alguns doentes não têm sobrancelhas, nem luz, nem gordura, nem consistência, nem esperança.

A vida é esperança. Viver implica (ter) esperança.

Lá fora está frio. Muito frio. O sol brilha ténue no meio do dia azuláceo. Apetecem sempre dias assim. Sente-se vivo. É por ora tudo quanto lhe importa.

Jorge Rebelo

Crónica de férias



Podia escrever uma crónica sobre uns dias fora do comum, diminuídos de horas certas mas aumentados de horas acertadas. Escreveria sobre nuvens de fumo e avistamentos de chamas (não me lembro de férias sem fogos nos noticiários da 1h da tarde) e da raiva do meu país não ter ainda sabido dominar a maldade e a incompetência. Ou talvez apenas sobre a sorte de não ter a casa ardida nem a vinha queimada. 

Podia escrever sobre a sombra benfazeja de livros lidos com uma mão no ar para fazer sombra nos olhos, e areia a soltar-se do meio das páginas. Com uma sesta entre capítulos.
Podia escrever sobre sandes de pão alentejano, com uma maminha saliente num dos lados e um sabor levemente ácido, embrulhadas em papel de cozinha e distribuídas por cinco mochilas, como se os meninos tivessem que partir cedo para a escola. 

Podia escrever sobre fotografias na varanda, (eu muito compenetrada a sorrir para uma foto de família formal e bem enquadrada com eles atrás de mim em fila, e afinal estavam todos a fazer caretas); sobre palavras cruzadas; sobre amizades que continuam aqui como se ainda no pátio da escola; sobre amêijoas com muito molho; sobre o melhor arroz-doce do mundo; sobre a tranquilidade da esplanada às primeiras horas do dia apenas atravessada pelo trinado dos pássaros e pela rega rotativa. 

Podia tentar explicar esta ligação antiga a uma praia com muitos bebés e meninos; ou sobre o rio e as alforrecas e os búzios trazidos pela maré baixa; dissertar sobre noivados, namoros, paixões e respectivos sonhos de eternidade, que se intensificam muito ao pôr do sol.
Ou sobre uma casa de banho com densa nuvem de vapor, sinónimo de família junta.

Mas não me apetece, estou de férias e na esplanada do Pereira não se passa nada de jeito.

Graça Rodrigues

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Êxtase
!

- Sabes o que é o êxtase da vida? Acredito que não. São os sonhos que escorrem da nossa Alma sem medo de ter ou perder... nada se perde, tudo se conquista com lágrimas e atropelos que fazem derreter qualquer pedra de gelo! O coração pode ser a pedra mais rochosa que existe. Mas o sonho, ai o sonho faz milagres, atreve-se a perfura-la sem pedir licença, por linhas travessas penetra silenciosa nos sentidos! Não existem causas perdidas no desbravar dos teus sonhos... não cedo a vontades nem a manipulações, que uma sociedade mais que descrente ditou que seria assim! No livro da tua vida não existe Código Penal, somente uma luz previa que te avisa do perigo. Nos círculos que vamos vivendo tantas e tantas vezes em contra-mão... sabes porquê? Défice de atenção do teu coração. Trata dele. É muito mais que um músculo cardíaco que alimenta uma vida, sempre em completa negação. Esta nossa conversa com os sonhos é somente uma chamada de atenção! Porquê? Não me faças essa pergunta. Não a mim! Sou um ser errante como tu...Doce é o pecado, aquele que possas ter ou esconder, em comparação às maldades infligidas no desespero que dás ao universo do teu coração! Sorri. A vida está aqui! Sonhos jamais serão dúvidas ou incertezas, mas sim leituras perspicazes e misteriosas que habitam no teu ser... deleita-te no êxtase dos teus sentidos, das ânsias faz longos caminhos, doces passagens enigmáticas que vão escorrendo em segredo pelos teus dedos! Dou-te a minha mão...
( Reservados os Direitos do Autor Lina Freitas)

domingo, 13 de agosto de 2017

A sombra dos dias



O ruído do frigorífico,
No decurso da tarde serena,
É, dos sons, o magnífico,
O algoz da minha pena
(Pena que não tenha pena…)

E há os gatos que miam,
As portas que batem,
Os ventos que assobiam,
Os cães que latem
(Nem que me matem!)

E o ranger da mobília,
Os estalos da madeira,
O chá de tília,
O estrépito da feira?
(Hoje não é terça-feira!)

E a escrita consistente?
(O brainstorm da treta?)
A prosa de toda a gente,
Não esta poesia insurreta!
(Como é incorreta!)

Foi a cadeira que estalou,
O silêncio que me bateu,
Ninguém falou ou miou,
A não ser a cabeça... que sou eu?
(Não quem me concebeu!)

Cá dentro e lá fora,
Os sons do meu dia,
A rotina que não melhora
As laudas de uma tarde vazia.
(E toda esta heresia?..)

Escrever é poder sair.
O belo pode esperar,
Como agora mesmo ungir
O que não se pode sarar.
(Escrever é sem olhos chorar...)


Jorge Rebelo












Consenso e conflito


As lutas contínuas desgastam-nos, envelhecem-nos, separam-nos. Prefiro de longe o consenso ao conflito, a concórdia à guerra. E quando discordo em absoluto de alguém, inamovível e inconversável, regra geral, deixo-o falar sozinho. Evito pessoas inconciliáveis, que nunca dão o braço a torcer. Sempre que possível, evito o conflito, a escalada originada por uma discussão, que, não raro, descamba na irracionalidade e no débito de descargas emocionais absurdas, desajustadas e ocas, proferidas apenas com o fito de magoar.

Nessa fase, aquilo que parecia ser à partida uma saudável troca de argumentos, um desajuste que se queria ver ajustado, transforma-se numa espiral de agressividade. Naturalmente por defeito meu, que suspeito tenha a ver com a verbosidade enfática com que defendo certas teses, acontece que muitas pessoas sentem um prazer quase mórbido em me contrariar. Não que a atitude de contra-argumentar, a clivagem, seja pouco salutar, ou construtivamente incorreta. Antes pelo contrário. E não foram raras as vezes em que, à conversa com pessoas muito mais sensatas e lúcidas do que eu, depois de alguma introspeção, me tenha forçado a mudar de pensamentos e atitudes. O cerne da questão é outro. 

Refiro-me naturalmente à guerrilha em que rapidamente se pode transformar uma troca de argumentos contrários e inconciliáveis. E as tensões são sempre superiores quando as principais linhas de clivagem se situam no plano da moral, ou no âmago das formas primárias de subjetivar que respeitam a cada um de nós.

Quando a discussão tem por temáticas realidades mundanas, as tensões são indubitavelmente mais baixas, pois a capacidade negocial e conciliatória é maior. O que eu rejeito liminarmente é a querela fácil e brejeira e o transbordar agressivo de quem, por recusar ficar na 'mó de baixo', independentemente da justeza das ideias que contradita e apenas porque sente a sua estima maculada por um argumento que julga lhe está a ser imposto, reage com desproporcionalidade.

Todos queremos ser inovadores, donos da razão, seres únicos, dotados de uma armadura moral e de uma estrutura de pensamento assertiva. A natureza humana assim nos fez, dessa maneira formatada e irrevogável.

Eu sou, sobretudo, um homem de paz, de mimos e de amor, assumidamente lamechas, embora tenha um feitio assaz complicado. Sou temperamental e agridoce: tanto fervo em pouca água e descampo, como caio na lisura. Acho que vou envelhecer irremediavelmente assim. Gosto do bom humor e da doçura. Detesto a contenda e a crispação; e muitas vezes as minhas atitudes de 'fuga', e uma certa não sociabilidade, são confundidas com cobardia.

Há justamente quem pense que para mantermos íntegra a nossa personalidade, para nos sentirmos valorizados como pessoas, devemos ter sempre pronta na ponta da língua, uma resposta implacável e demolidora, como fora uma espada apta a ser desembainhada, perante um argumento ou uma crítica que nos desagrade.

Deixo essa gloriosa tarefa para os fazedores de opinião que ganham a vida participando em debates e contendas. Tenho uma estrutura de pensamento, arquétipos morais, vícios, preconceitos, contradições, tiques, e não sei quantos mais defeitos, com mais de meio século de sedimentação. Admito e agradeço que me mostrem o outro lado do espelho, me façam mudar de opinião, me coloquem num lugar onde a forma como perspetivo as coisas suporte um olhar diferente e me conduza a conclusões opostas. Não tenho é pachorra para corridinhas para ver quem chega em primeiro lugar, digladiações frustres, contendas onde a regra é ganhar o que berrar mais alto os seus argumentos e for capaz de colocar a voz duas oitavas acima.

Em troca desta consciente abdicação, aceito para a minha vida um acrescento de solidão, uma sociabilidade mitigada e uma seletividade cada vez maior na forma como escolho aqueles com quem interajo no tempo e no espaço - aquele que resta depois do trabalho, das minhas leituras, da minha escrita, da minha música, dos meus pensamentos. Depois dos meus tão queridos desertos de solidão, viro-me naturalmente para aqueles com quem tenho empatias, os que admiro e os que amo.

Jorge Rebelo

sábado, 12 de agosto de 2017

Os amigos



Luz sombra
palavras silêncio
tecem-se neste tecido
os amigos
ficam lá onde os desejamos
aparecem ou desaparecem

Respeitam a nossa história
sem interrogações
sem reticências
sem exclamações
(isto podia ser um exercício de pontuação)
sempre lá onde os desejamos

Pressentimo-los por onde passamos
Pendurados nas árvores
Parados atrás dos arbustos
Suspensos das nuvens
Andando lado a lado
pelos ínvios caminhos que traçamos

Sombras e luzes
presenças diáfanas
que soltam a sua perfeição
na esteira da nossa imperfeição

À solta nos risos
nos abraços
nos silêncios
nos recuos
nos amuos
na vida

Velam os nossos passos
e dão-nos a mão quando cegamos

Imperfeição esbatida pelo sulco
de outra mão

Nunca a palavra será imoderada
para falar desse oceano
em que mergulhamos
repetidamente
e sempre com a mesma alegria
da dádiva
e da limpidez do olhar

Maria Eugénia Alves







sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Tu

Não te procurei na praia naquela noite de neblina 
Não te agradei de imediato
mas ficou algo no olhar e no ar...

Ficou um leve odor, uma sensação meio indefinida, uma brincadeira inocente, um jogo com toques de magia...

Foste um parceiro surpreendente, numa noite imprevisível 
longa, intensa, e escaldante

Foste paixão, sensualidade à flor da pele, calor, intensidade e cumplicidade...

És um doce, saboroso e intenso, quero-te
em troca de um beijo salgado, insaciável e apetitoso.
És tu...apenas tu...e para já, és exatamente o que quero e preciso neste momento.

Maria Carvalho Amador

Vida

Nascer é viver amar é crescer sofrer é perder e por vezes renascer. Nada na vida é inflexível, nada é eterno, apenas fases, ciclos, amores, encontros e desencontros. Contudo, por vezes... basta um simples gesto, um olhar, um toque, uma palavra, para que algo aconteça, para que algo se quebre, ou que se una... E novamente no jogo da vida se baralhe e volte a dar.

Maria Carvalho Amador

O Macedo da Travessa da Glória





Não há dia que me desloque à Baixa lisboeta, com algum tempo livre, que não visite o Macedo da Travessa da Glória. Tanto quanto recordo, há quase quarenta anos que frequento os principais alfarrabistas da cidade, desde os mais finórios, da Rua do Alecrim - e, nesses, era só mesmo para ver os livros e admirar as suas lombadas gravadas a oiro, bem como as gravuras antigas, os mapas e as fotografias de época, pois os preços praticados eram-me interditos -, onde, não raro, encontrava escritores de vulto e nomes sonantes da nossa cultura, passando pelos alfarrábios do Bairro Alto, do Chiado, da Trindade e do Príncipe Real. E, se no início, o que me movia era a impossibilidade económica de comprar livros novos, restando-me como única opção o livro usado, ou manuseado, como eufemisticamente alguns prosaicos os gostam de apelidar, aquilo que começou como uma falta de alternativa, foi-se paulatinamente transformando num gosto e mais tarde num vício. Mas foram sempre os alfarrabistas modestos, aqueles cujo comércio são os livros manuseados, e não as preciosidades literárias, ou as edições raras e de luxo, que recolheram as minhas preferências. E ainda hoje assim é, pois, mais do que a beleza da capa e da contracapa do livro, que não desprezo, o que mais me importa é mesmo o conteúdo da obra.

Apesar de ter perdido grande parte das minhas capacidades olfativas e, com isso, algum do espólio desse repositório de memórias formidável, cada vez que entro na tabanca pombalina do Macedo, reconheço de imediato odores que sempre me foram familiares: a humidade entranhada nas paredes, o bafio mesclado com os cheiros indescritíveis que se desprendem das estantes esconsas, onde livros, que há quase um século não vêem a luz do sol, jazem amontoados uns sobre os outros. Um ambiente deveras impróprio para quem sofre de algum tipo de alergia ou renite, onde uma amálgama de odores, que se mesclam generosamente com os cheiros das frituras e dos vinhos, das casas de pasto que convivem paredes meias com o sebo do Macedo, entram sem parcimónia pela livraria, criando uma atmosfera olfativa de tal ordem que, ainda que me vendassem os olhos, quase podia adivinhar que me encontrava dentro do estabelecimento do alfarrabista da Travessa da Glória. 

O Macedo, tripeiro de gema, há muito radicado em Lisboa, vivendo para os lados da Almirante Reis, mas conservando uma inconfundível pronúncia do norte, é um homem esguio, seco, de rosto encovado e varicoso, chupado por uma vida de cigarros e tacinhas, de cuja boca sobressaem dentes escassos, de um amarelo acastanhado. Não raro, quando se emociona, pois está sempre a opinar sobre tudo, e o que era antigo é que era bom, espicha perdigotos, que se lhe depositam no canto da boca, mas dos quais rapidamente se livra, passando na boca a manga da camisola. O livreiro ainda mantém aquele ar de 'pintas dos anos 50': desafiador, irónico, fadista, amante de ditoches, falador incansável e armado com a sempiterna unharra multiusos do dedo mindinho, com que amiúde coça o interior dos ouvidos, adereço que sempre lhe conheci. Cada vez que me vê, todo ele é uma festa. Mima-me com o epíteto de "doutor" no começo de cada frase. Oiço-lhe as histórias de sempre, que aliás conheço de cor. A viagem ao Brasil, nos anos 60, e as peripécias no Rio de Janeiro com as brasileiras; a sua infância na Ribeira; os banhos no Douro, como os meninos do Anikibobó do Manoel de Oliveira; a vida boa que já teve; as inúmeras amantes que passaram pelo seu leito; a mulher, que é uma santa e tudo lhe tem aturado e desculpado. Julga-se, acima de tudo, um literato, porque vende livros há muitos anos e conhece títulos como ninguém. Faz questão em discutir comigo algumas leituras - diz que já não lê há uns anos porque as cataratas, entretanto, comeram-lhe os olhos - e fica radiante quando percebe que eu conheço muitos dos livros de que fala. A mulher tem uma venda de peixe no Mercado do Rego e só quer saber de telenovelas. O primitivo arrendatário do estabelecimento está cego, internado num lar, e agora é ele que tem de continuar sozinho à frente do negócio. A renda, antiquíssima, felizmente é simbólica, pois o dinheiro que atualmente ganha mal dá para o tabaco, para umas quantas tacitas e para comer qualquer coisinha. E o prédio, com cerca de trezentos anos, estala de podre. Mas que fazer? Os herdeiros do senhorio recusam-se a fazer obras e já lhe fizeram saber que até iam a Fátima a pé se ele algum dia resolvesse sair dali.

O Macedo acreditava em mim. Esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor. Dizia que eu era um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro. Falávamos de ópera e ele trauteava árias; comentávamos coisas do Camilo e do Zola e especulávamos sobre a enorme fortuna que ele teria se os livros de sebo que tinha em stock fossem libras de oiro. E ele ria-se sempre e cofiava o bigode amarelecido, que entretanto quase fez quase desaparecer com a ponta da unharra do dedo mindinho.

«Um santo natal para si e para os seus, Sr. Macedo, e obrigado por me aconselhar sempre "boas leituras". "Apareça sempre, doutor, nem que não compre nada, nem que seja para me visitar, pois enquanto nos virmos um ao outro, ainda que poucas vezes por ano, é sinal de que ambos estamos vivos.»

Jorge Rebelo

Caso temerário

Querem-me o medo e coisas impossíveis. A ver se explano o medo de escrever e isso. Faço a cena dentro do fantástico, por assim dizer, não com o bicho-de-sete-cabeças que esse já se fala dele há tanto tempo que não é de todo impossível de existir, invento mas é um monstro de frases, um que se arrastasse com as letras a cair por ele abaixo, gritando socorro… 

 Tenho medo de escrever. Escrever é um bicho grande e feio e feroz e ruim, um papão de criancinhas indefesas e lindas.


Gina G

Sonhos e pesadelos

Há os sonhos e os pesadelos, assim como existe o doce e o amargo, o belo e o feio, o bom e o mau, neste mundo de antíteses em que nascemos, vivemos e morremos. Dos sonhos, muitas vezes, a nossa recordação é frágil e quando se trata de recordar como foram, os pormenores insólitos multiplicam-se e deslizam na nossa memória quase sempre na margem da bizarria. Quando os sonhos se transformam em pesadelos, estes por vezes nem têm enredo, nem formas distintas para contar, apenas uma sensação de sufoco, de perigo eminente e inexprimível. Às vezes fica só o medo informe, a sensação de que dormir é mau, que algures na noite nos aguarda um terror qualquer. Dormimos embrulhados num manto, por vezes doce, outras vezes maléfico, e o contínuo dos dias vai tecendo no nosso subconsciente a matéria-prima de que os sonhos e os pesadelos se forram.

Jorge Rebelo

Um ensaio sobre o nada


Os sonhos que tenho acariciado mesclam-se num universo imenso de pensamentos recorrentes, felicidades acalentadas, raramente concretizadas. São expressões, imagens, projetos, devaneios, amores baldados, tudo coisas que se conjugam entre a fronteira daquilo que entendo ser o céu e a terra, ao menos da forma como os concebo. Não há divisão entre eles, nem os distingo, senão quando chego a algum ponto em que sei ter construído algo a que, por necessidade imperiosa e pragmática, chamei realidade. Reconheço-o – faço disto uma contrição – pois quantas vezes aquilo que escrevo, a forma como o faço, é intrincada, pouco percetível, quase como se não houvesse consciência alguma de um destinatário que não seja eu mesmo; é-me, no entanto, penoso, aligeirar este discurso impenitente, que só assim me sai: uma água que brota em aspersão da torneira das minhas emoções. São os meus pensamentos expatriados, quase sulfurosos, confusos, que saem a passeio e invadem laudas brancas, imaculadas, aptas a receber tudo o que alguém lhes aprouver gravar, onde, naturalmente, se incluem palavras órfãs de contexto.

Jorge Rebelo

Brincadeiras cósmicas



Indómita, vôo sob o cosmos encavalitada numa nuvem negra que cobri de algodão tão branco como só a alvura pode ser. Levo comigo a canção ociosa das cigarras, e um malmequer que vou desfolhando, benquerendo, sobre os pastos verdes.

Mais além, derramo sobre o vasto oceano, calmo, azul e levemente ondulante, o brilho das estrelas colhidas no céu, e um pouco à frente, defronte de um casebre onde crianças brincam na clareira, deixo um dos anéis roubados a Saturno.

Súbito, ouço uma voz autoritária chamando o meu nome!
É o Sol, repreendendo-me por me ter esquecido a chuva, e ao invés, ter trazido a noite escondida na minha montada!
Sorrio, encabulada, pedindo desculpa com ar atarantado, e dou meia volta. Está na hora de recomeçar tudo, outra vez!

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10/08/2015 - revisto

Ana Sofia Carvalho

Prece pela Terra


Imponente, o sol despede-se em fogo
Como qu' ardendo p' la terra macerada!
Quem dera a chuva chorasse
O vento, solidário, amainasse
E a terra mais não fosse 
P'las chamas dilacerada!

ASC
( direitos reservados)
10/08/2016 - revisto

Ana Sofia Carvalho

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Uma conversa particular

Não é fácil exprimirmos o que sentimos em todas as circunstâncias. Não é só um problema da língua, do ser difícil, traiçoeira, complexa, contraditória, ou tudo isso e mais alguma coisa. O dizermos o que nos vai na alma, não passa de uma velha metáfora, despida quantas vezes de espiritualismo, mas pungente na nossa necessidade de afirmarmos, permanentemente, uma existência subjetiva e, de algum modo, transcendente em relação a uma entidade que nos espreita do outro lado do espelho; e que, tantas vezes, não identificamos nem reconhecemos como sendo a destinatária dos nossos expatriados pensamentos. O que nos vai na alma, ou, dito por palavras, o que sentimos, é um caudal iníquo e contraditório em que se misturam, de forma aleatória, quando não descontrolada, sensações, pensamentos, desejos, fantasmas, fantasias, medos vagos e outras coisas de igual ambiguidade. Os sentimentos propriamente ditos, aquele fluxo que medeia entre o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, a tranquilidade e a inquietação, o desespero e a esperança, a inveja e a gratidão, habitam-nos como uma segunda pele e dão-nos, além do mais, algum sentido de existência e de coerência. Todos sabemos algumas coisas dos nossos demónios. Eu sei que preciso de fazer uma pausa para falar com eles - uma conversa em particular, como é evidente.

Jorge Rebelo

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Se eu pudesse




Pudesse eu semear vastos campos de sorrisos, mãos generosas e corações largos,
E compor de pétalas e flores uma música celestial que apaziguasse todas as feridas;

Pudesse eu exaltar em silêncio a minha alegria para que a dos outros mais se escutasse,
E imprimir em todas as arestas e durezas dos caminhos a suave textura do algodão;

Pudesse eu transformar em luz a escuridão das almas sombrias,
E seria eu própria raio solar, reflexo da lua, brilho estelar e arco íris;

E não mais se veriam lágrimas de dor ou pensamento tristes 
E ao sorriso das crianças entregaríamos a nossa devoção!

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07/08/2015 - revisto

Ana Sofia Carvalho

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Apenas...

Vou deixar ciciar as palavras enquanto a noite me envolve e o amor e o vento me sussurram ao ouvido lembranças do sabor do dia: o ranger dos passos; mãos que se entrechocam rápidas sem saber onde poisar; bocas que encontram corpos que pesam a súbita ausência de palavras… tão distantes impuras, quase de ausência, que recusam a presença estática inútil; o estar não estar como fosforescência de brilho ausente muito mais que subtil.

E disse:

Eles desceram da noite e fizeram amor na geada e de manhã na relva. Depois, como dois namorados, desceram a rua e beijaram-se imóveis na tarde. O céu fez-se azul, apenas...

Jorge Rebelo
...não te magoa, a solidão da obra criativa?

Gina Grangeia

Dança de palavras



Dança comigo!
Encosta-te a mim e segue-me!
Deixa-te ir em meu comando, sem ser valsa e sem ser tango
Numa dança de palavras, da nossa boca sopradas... Vem dançar comigo!
Só tens de seguir os meus passos
Aninhar-te entre os meus braços
Deixar-me guiar-te! Escuta o som do nosso embalo
Leve, solto, suave e raro
Num movimento imperturbado 
E tu quase em mim colado Vai-me falando enquanto bailas
Que a música sejam palavras, me façam esvoaçar
E no fervor deste remanso, eu não paro e não descanso
Não vá a música calar Só quero mais uma vez...
Uma vez de cada vez... contigo a voz não cansa
Mas...
As palavras já calaram, os nossos corpos pararam
Foi minha a última dança!..

Teresa Lino Vicente

domingo, 6 de agosto de 2017

Mar... só tu sabes!



Mar... só tu sabes!

Sentei-me na areia molhada
De um mar que ali desmaiou
Escrevi com a espuma dourada
Uma palavra ditada
Que o meu coração guardou

Nas pedras daquele recanto
Que este mar mantém para mim
Refletem um sol brilhante
Que me deixam num instante
Com um sorriso sem fim

O sol deu-me cor ao rosto
Debruça-se, quase deitado
Lentamente como eu gosto
Partindo para o lado oposto
Em vermelho alaranjado

Ó mar...vens aí de novo
Apagar o que escrevi
Não te faças de engraçado
Lê em silêncio, fica calado
E guarda o que sabes, para ti!


A Editora deu o tema .... Espuma, Mar e Pedras !!!!
Publicado pelo grupo Múltiplas Escolhas Editora

Teresa Lino Vicente
Foto: João Dantas

Absoluto

Há muitas caixas
de muitos tamanhos
e muitas cores.
Estão fechadas
contêm mistérios.

Estão sobre a erva,
sobre os mares e rios,
sobre a terra,
sobre as areias.

Fui em busca
daquelas caixas
que contêm mistérios.
Tive uma e outra
nas mãos,
porém, nunca pude abri-las.

No final, senti a morte
recostei-me sobre a erva
vi muitas caixas
que continham mistérios.
Estavam fechadas.

Vi o céu, os mares
os rios
e toquei a erva.
Era verde e húmida
e senti-me terra
erva, mar e céu.

Vi espaços de luz
ouvi a música
da claridade,
senti os amanheceres
a paz do brilho da manhã,
a vida palpitando.

E fui uma luz clara
uma nova luz.

E senti o meu amor
por ti!
E converti-me em água
transbordada.

A terra abria-se
à minha passagem,
banhei infinitos amanheceres
e não me detive.

E a luz sempre brilhou
e houve um novo amanhecer,
todo envolto
por aquela cortina de veludo anil
de onde eu te enviava beijos
num adeus de tules.

Jorge Rebelo

Da inveja

Se há sentimento mais desajeitado, infeliz, irritantemente inútil e absolutamente a dar com nada, só posso estar mesmo a referir-me à inveja. E diferentemente do ciúme ou da cobiça, que lhe são parentes próximos, não se relaciona com algum objeto externo, não corresponde a nenhum desejo concreto e nomeável, ou seja, não se quer forçosamente ter ou ser o que alguém é ou tem. Apenas se sente raiva e zanga pela existência de outros designados - os escolhidos a dedo pela felicidade de ser ou ter: sucesso, beleza, inteligência, riqueza, cultura, capacidade de sedução, charme... e se considera em alta voz que essas mais-valias têm necessariamente subjacentes situações de demérito, ocasos da sorte, injustiças profundas, distrações de Deus...

E ainda que muitas vezes os possuídos por tais sentires reconheçam (para si mesmos – deep inside) o mérito e a justeza na obtenção das qualidades ou pertenças de alguém, não conseguem evitar deixar-se inundar pela estreiteza deste sentimento tão trivial e tornam-se cromos indisfarçáveis.

Este sentimento é tão infeliz - muito infeliz mesmo - que não tem qualquer gratificação: alimenta-se a si mesmo em circuito fechado e é feito de ressentimentos que moem e esmagam, que azedam a vida e as relações, o que torna tudo o que se tem sempre pouco, sempre menor, sempre desvalorizado. E é sobretudo um sentimento inútil, pois apesar de todos os argumentos de fundo que se possam mobilizar acerca da “sorte” de uns e do “azar” de outros, não se consegue mobilizar forças, formas expeditas de ação no sentido de eliminar ou fazer desaparecer os “seres” que causam tal desconforto, já que a sua liquidação física, no mínimo, seria um ato de loucura ou de vingança. Acho, entretanto, que mesmo que isso fosse possível, o invejoso precisaria sempre de um “ódio de estimação e a perda do objeto contra o qual direciona a sua inveja seria rapidamente substituído por outro.

O mais ridículo da inveja é que ela é óbvia e transparente. Apanha-se mais depressa um invejoso do que um mentiroso (não caio no exagero de fazer a comparação com um coxo, pois acho que está ela por ela). A inveja é irreprimível e percebe-se à légua quando alguém destila este fel.

Infelizmente é com este sentimento, de uma vulgaridade quase absurda, com que lidamos no dia-a-dia nas nossas atribulações profissionais, nas relações do quotidiano, e temos de estar preparados para ser a tal “muralha de aço” que não se deixa abater ou azedar com esta água ácida com que muitas vezes nos querem batizar.

Julgo eu, porventura com certezas, que não serei o único que já provou o travo destas mentes acéfalas que serpenteiam sibilinas em redor das horas dos nossos dias. Já não faço nenhum esforço - e consigo ! - para não ser como eles. Há muito que me quedei - esta espécie de franqueza sem cueiros - na admiração pelos mais dotados que, em simultâneo com um quase sentimento de desprezo, nutro pela mediocridade subjacente à inveja e aos que a adotaram como práxis do quotidiano.

Parece pois que estamos todos condenados a viver com esta estirpe, árida e ignóbil, de gente que ainda não aprendeu a canalizar a imensa energia que despende invejando, ao invés de melhorar a sua auto-estima na realização de algo que lhe traga a gratificação capaz de fazer quebrar o ciclo infernal do ver a felicidade através dos olhos dos outros. Haverá, porventura, algo mais triste do que isso? Quase não consigo imaginar!

Jorge Rebelo

De como pensar pode ser muito pouco inteligente

 


Às vezes pensar pode ser muito aborrecido...
Pensamos, pensamos e... não chegamos a lado algum... Ainda por cima, quando tiramos essa ( aliás, brilhante!!) conclusão, percebemos que desperdiçámos energia valiosa que podíamos ter despendido numa outra importante função humana: sentir!
E como esta outra (igualmente importante) função requer que utilizemos as nossas funções sensoriais ( ver, escutar, cheirar, palpar, saborear), percebemos também que na mencionada atividade mental infrutífera consumimos energia que podíamos ter canalizado para aperfeiçoamento e/ ou treinamento dos sentidos, para não falar da experiência hedonista geralmente associada aos mesmos, e da qual nos privámos em vão!

Conclusão: se pensar muito nos pode roubar energia sem que proporcione resultado satisfatório, ainda por cima privando-nos dos outros sentidos e dos benefícios físicos e intelectuais que deles podemos retirar; então pensar pode ser uma atividade muito pouco inteligente!!!

E se assim é, não será mais acertado reservar um tempo para nos dedicarmos exclusivamente à função de sentir?! 
Que tal começarmos ainda hoje?

P. S. Isto aplica-se exclusivamente a pessoas pessoas. Por favor não transmitir a informação a quem não se enquadre na categoria, por exemplo, o Presidente dos EUA (entre outros). A função sensorial do dito poderia resultar em prejuízos graves para a humanidade e para o planeta... Obrigado. :)

ASC
( direitos reservados)

Ana Sofia Carvalho

Pensamento

Em algum momento da tua vida, o teu coração já ficou magoado. Mas, isso pode significar novas oportunidades e belas descobertas. Quando somos massacrados pelas dores da vida, essa poderá ser a ocasião de um novo renascer. Deixa o campo fértil para um novo plantio na tua Alma. Crescerá o que lá semeares. Confia e foca- te no que queres, para ti.

Cila Oliveira

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Da (des)esperança


Por vezes lamentamos os silêncios que impregnam as nossas vidas, mas com a certeza firme de não desejarmos uma orgia de ruídos sempre à nossa volta, impedindo-nos de nos sentirmos nós mesmos. O pior é sempre possível mas não é fatal que tal aconteça. Se nos lançamos na ação, se nos empenhamos, se a motivação existe e há um rumo, se sabemos o lugar para onde queremos ir, poderemos esperançar alcançá-lo.

Na medida em que o pior não é uma fatalidade é permitido termos esperança. E como o pior pode ser evitado, é urgente avançarmos com empenho naquilo que julgamos evitar a nossa infelicidade.

Para além do otimismo e do pessimismo, há sempre lugar para a esperança. Esta apoia-se sobre a confiança no possível ou no que poderá sê-lo. O tempo, de certa maneira, é uma criação do possível e é fácil entendermos que um dos grandes erros das utopias foi sempre o de tentar fixar, através da imaginação, o futuro ideal, o termo perfeito de qualquer história e até os meios para lá chegar. E tal forma de pensar, por vezes, impede-nos de apreciar com rigor o inesperado, o acontecimento que transforma o (nosso) horizonte previsível.

Mais grave que tudo é a tomada de consciência de não sabermos o que nos pode fazer felizes, nem quais os melhores caminhos para trilharmos. Resta-nos, então, a exuberante satisfação de podermos afirmar com veemência: «Eu não sei bem aquilo que quero, mas estou certo daquilo que definitivamente não quero.»

Para muitos, onde eu me incluo, só isto já é um começo, seja do que for.

Jorge Rebelo

Exaltação da Esperança




Há uma estrada de luz nos labirintos da vida
E um punhado de flores por abrir em todos os jardins...

Abre os olhos, atenta para lá das máscaras fingidas e dos véus opacos
E procura as transparências que também existem nos abismos da alma.

Dá-te a tranquilidade de uma inspiração tão profunda 
Que o sangue se sublime dessa avalanche de oxigénio;

E experimenta entregar-te à sensação de pura leveza
Que os corações conhecem do alívio trazido pelo perdão.

Volta costas ao lodaçal nauseabundo da infâmia e da cólera 
E faz-te cego e surdo aos descomandos da crueldade.

Hoje, o céu vestiu-se de azul e o sol acordou generoso
E escutam-se aves entoando cânticos de esperança!

Se te permitires sorrir da alegria dos teus anseios
Perceberás que a cada desilusão um novo sonho se segue;

E se vires a vida como um copo pelo menos meio cheio
Sentirás a serenidade que a paz de espírito concede!

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03/08/2015 - revisto

Arte: Claude Monet, "Impressão, O nascer do Sol"

Ana Sofia Carvalho

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Devaneios de paixão




Beijo golfinhos que vejo no céu
E voo borboletas sobre o mar...
Sou sereia com juba de leão
Flor vívida que nasce granítica...

Mulher que pensa com o coração,
Tenho estrelas em vez de dedos
E o Sol bem guardado no ventre,
Leito sagrado da minha paixão...

Não sei se o que escuto é o vento
O terno sussurro da chuva caindo
Ou insectos passeando meu chão...

Mas tudo o que sinto e escuto,
Música, ruído, toque ou sensação,
Me lembram que agora existo
para me entregar nos teus braços,
E aproveitar cada momento
De puro encanto e emoção !

ASC © - reservados todos os direitos

01/07/2015 - revisto
Ana Sofia Carvalho


Arte: Naoto Hattori

Sobre uma escolha vital


Recentemente li um magnífico ensaio da Maria Filomena Mónica intitulado "A Morte", numa edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que a autora disserta brilhantemente sobre muitas das polémicas que envolvem esse fenómeno biológico inevitável.

Um tema que a muitos de nós causa alergia, sequer, pensar, quanto mais abordar o assunto. Mas a propósito da eutanásia e do suicídio assistido, que, como todos sabemos, são realidades distintas, relembrei um lindíssimo filme, magistralmente interpretado por Javier Bardem, "Mar Adentro", inspirado na história verídica de Ramón Sampedro, que ficou tetraplégico após um mergulho no mar, aos vinte e cinco anos de idade.

Ao longo de três décadas, Ramón lutou pelo que julgava um direito seu, o suicídio assistido, pois, apesar de totalmente paralisado da cabeça para baixo, estava lúcido e conseguia comunicar, pelo que, mesmo contra a vontade da família, decidiu prosseguir a luta, até que em 1998 apareceu morto na cama. Na verdade, engolira em pequenas doses, um líquido onde alguém dissolvera cianeto de potássio e a polícia desconfiou de uma amiga, Ramona Maneiro, que viria a ser presa. Mas, uma vez que nada foi conseguido provar contra ela, foi solta. Uma vez prescrito o crime, sete anos depois, Ramona confessou publicamente ter sido ela quem ajudou Ramón a morrer, acrescentando que o fizera por amor.

Uma vez por outra, os temas da eutanásia e do suicídio assistido enchem uma página de jornal, mas nunca nenhum partido político teve a ousadia de fazer propostas legislativas sobre o assunto. Num país habituado à hipocrisia e ferozmente dominado pela mentalidade católica, as únicas vozes sonantes são as dos que criticam ferozmente aquilo que já é admitido há muitos anos na Bélgica, na Dinamarca, na Holanda e na Suíça, onde, aliás, em Zurique a clínica "Dignitas" pratica o suicídio assistido - somente para doentes terminais ricos, claro.

A noção da santidade da vida é um ideal civilizado, todos o sabemos, mas, perante a vontade esclarecida de um doente terminal, em sofrimento atroz, com uma degradação física sem retrocesso possível, que direito tem a Igreja Católica de opinar e influenciar toda uma sociedade, no sentido de impedir a vontade de alguém abreviar a sua vida de uma forma digna? Se amanhã um médico me disser que sofro de uma doença incurável, que vou sofrer imenso, que não há cura possível, será que tenho de me sujeitar aos cuidados paliativos contra a minha vontade? Ser ligado a um ventilador e viver com morfina e soro, como se fosse um ratinho branco de laboratório, ou não deveria eu, se completamente esclarecido e mentalmente capaz de decidir sobre o meu destino, poder opinar sobre se queria continuar a viver dessa forma ou abreviar um sofrimento inevitável?

Será que alguma vez teremos coragem de encetar este debate?

Ao que parece, em países mentalmente muito além da nossa mesquinhez - continuamos a sofrer a atrofia da Igreja Católica que, mesmo perante a presença de doenças infetocontagiosas mortais, nega o uso do preservativo e opõe-se ao aborto, inclusive em caso de violação da mulher, quanto mais nestas questões! - Estes assuntos estão há muito debatidos pela sociedade e devidamente legislados.

Não defendo os "doutores da morte", nada disso. Apenas acho que, em situações limite, deveria poder caber ao doente, ou à família mais próxima, caso este já não possa decidir, a escolha entre antecipar o seu final ou padecer tormentos inevitáveis.

Devia existir um "testamento vital", um instrumento jurídico apto a podermos, desde já, fazer as nossas escolhas sobre tais assuntos, isto enquanto estamos lúcidos, sãos e com capacidade de decidir, sobre qual a atitude que desejaríamos que fosse tomada quanto a nós numa dessas situações. 

Jorge Rebelo

Às vezes penso

Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...