quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A subir


Hoje de manha quando cheguei à rua, a opacidade da manhã envolveu-me com aquela luz especial, a luz de outono que adoça os contornos e envolve a paisagem em mistério. O céu plúmbeo, ameaçando chuva, e a chilreada inusitada dos passarinhos que pernoitam na copa das árvores, foram os primeiros registos do dia que acabava de começar. No passeio fronteiro ao prédio onde habito, os carros, com os vidros embaciados do orvalho da noite, engalanavam-se de folhas escarlates e amarelas, mas, à medida que a luz se descobria, a quietude começava a soçobrar. 

Todos o dias, depois de tomar café no sítio do costume, conduzo por uma espécie de avenida, uma ladeira sem bermas, com pouco mais de mil metros, bastante íngreme por sinal, que rapidamente me leva ao centro da cidade; e, não raro, cruzo-me com várias mães que levam os filhos pela mão para a escola. As bermas, como referi, são praticamente inexistentes e os carros, regra geral, transitam a velocidades pouco recomendáveis. 

No regresso a casa, desta vez a subir, deparo-me com um cenário idêntico: pessoas que, ou por não terem transporte próprio, ou dinheiro para o transporte público, dirigem-se a pé para casa. O caminho é penoso, uma subida bastante inclinada, especialmente para quem já vem cansado de uma jornada de trabalho extenuante, quantas vezes com crianças pela mão. É comum cruzar-me com velhinhos que fazem diariamente o mesmo trajeto e, por incrível que pareça, até já me deparei com pessoas com deficiências físicas. 

Este cenário não é uma visão inerente à estação que nos bateu de mansinho à porta, mas antes, por infelicidade, uma realidade que, de tão corriqueira, já não toca o coração de pedra dos automobilistas que seguem afanosamente no quentinho das suas casinhas de quatro rodas, embalados pelo som do rádio sintonizado na estação preferida. 

Não sou melhor do que ninguém: sou um ser igualmente egoísta, que pensa primeiro em si e, depois, remotamente nos outros. Enfim, sou feito da mesma massa com que se fabricam os seres imperfeitos. Isto não significa que não tenha coração, que a consciência não me roa, que não questione o direito sublime de viajar no conforto do meu popó, enquanto os menos validos seguem com sacrifício a pé, ao frio, à chuva e à mercê de um condutor menos lesto que os possa passar a ferro. O que fiz para remediar isto? Para aplacar a minha má consciência? Ofereci boleia, por mais de uma vez, a duas senhoras que subiam com crianças pela mão e também a uma velhinha e, sem exceção, todas recusaram a minha oferenda. Não apresentaram justificação para a negação. Limitaram-se a sorrir e a dizer: "obrigado, mas não é preciso". Não as censuro. A misericórdia pelos outros, por vezes, humilha, ofende, confronta-nos com a nossa própria infelicidade; e os tempos são complicados, a criminalidade lateja em cada esquina. Afinal, de boas intenções está o inferno cheio. E quem não lhes diz a eles, transeuntes incautos, que eu não sou o diabo encarnado pessoa?


Jorge Rebelo

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Às vezes penso

Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...