terça-feira, 15 de agosto de 2017

Crónica de férias



Podia escrever uma crónica sobre uns dias fora do comum, diminuídos de horas certas mas aumentados de horas acertadas. Escreveria sobre nuvens de fumo e avistamentos de chamas (não me lembro de férias sem fogos nos noticiários da 1h da tarde) e da raiva do meu país não ter ainda sabido dominar a maldade e a incompetência. Ou talvez apenas sobre a sorte de não ter a casa ardida nem a vinha queimada. 

Podia escrever sobre a sombra benfazeja de livros lidos com uma mão no ar para fazer sombra nos olhos, e areia a soltar-se do meio das páginas. Com uma sesta entre capítulos.
Podia escrever sobre sandes de pão alentejano, com uma maminha saliente num dos lados e um sabor levemente ácido, embrulhadas em papel de cozinha e distribuídas por cinco mochilas, como se os meninos tivessem que partir cedo para a escola. 

Podia escrever sobre fotografias na varanda, (eu muito compenetrada a sorrir para uma foto de família formal e bem enquadrada com eles atrás de mim em fila, e afinal estavam todos a fazer caretas); sobre palavras cruzadas; sobre amizades que continuam aqui como se ainda no pátio da escola; sobre amêijoas com muito molho; sobre o melhor arroz-doce do mundo; sobre a tranquilidade da esplanada às primeiras horas do dia apenas atravessada pelo trinado dos pássaros e pela rega rotativa. 

Podia tentar explicar esta ligação antiga a uma praia com muitos bebés e meninos; ou sobre o rio e as alforrecas e os búzios trazidos pela maré baixa; dissertar sobre noivados, namoros, paixões e respectivos sonhos de eternidade, que se intensificam muito ao pôr do sol.
Ou sobre uma casa de banho com densa nuvem de vapor, sinónimo de família junta.

Mas não me apetece, estou de férias e na esplanada do Pereira não se passa nada de jeito.

Graça Rodrigues

1 comentário:

  1. Uma escrita fluída, sem arabescos, que se centra nas essencialidades. Gosto muito.

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Às vezes penso

Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...