quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Sobre uma escolha vital


Recentemente li um magnífico ensaio da Maria Filomena Mónica intitulado "A Morte", numa edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que a autora disserta brilhantemente sobre muitas das polémicas que envolvem esse fenómeno biológico inevitável.

Um tema que a muitos de nós causa alergia, sequer, pensar, quanto mais abordar o assunto. Mas a propósito da eutanásia e do suicídio assistido, que, como todos sabemos, são realidades distintas, relembrei um lindíssimo filme, magistralmente interpretado por Javier Bardem, "Mar Adentro", inspirado na história verídica de Ramón Sampedro, que ficou tetraplégico após um mergulho no mar, aos vinte e cinco anos de idade.

Ao longo de três décadas, Ramón lutou pelo que julgava um direito seu, o suicídio assistido, pois, apesar de totalmente paralisado da cabeça para baixo, estava lúcido e conseguia comunicar, pelo que, mesmo contra a vontade da família, decidiu prosseguir a luta, até que em 1998 apareceu morto na cama. Na verdade, engolira em pequenas doses, um líquido onde alguém dissolvera cianeto de potássio e a polícia desconfiou de uma amiga, Ramona Maneiro, que viria a ser presa. Mas, uma vez que nada foi conseguido provar contra ela, foi solta. Uma vez prescrito o crime, sete anos depois, Ramona confessou publicamente ter sido ela quem ajudou Ramón a morrer, acrescentando que o fizera por amor.

Uma vez por outra, os temas da eutanásia e do suicídio assistido enchem uma página de jornal, mas nunca nenhum partido político teve a ousadia de fazer propostas legislativas sobre o assunto. Num país habituado à hipocrisia e ferozmente dominado pela mentalidade católica, as únicas vozes sonantes são as dos que criticam ferozmente aquilo que já é admitido há muitos anos na Bélgica, na Dinamarca, na Holanda e na Suíça, onde, aliás, em Zurique a clínica "Dignitas" pratica o suicídio assistido - somente para doentes terminais ricos, claro.

A noção da santidade da vida é um ideal civilizado, todos o sabemos, mas, perante a vontade esclarecida de um doente terminal, em sofrimento atroz, com uma degradação física sem retrocesso possível, que direito tem a Igreja Católica de opinar e influenciar toda uma sociedade, no sentido de impedir a vontade de alguém abreviar a sua vida de uma forma digna? Se amanhã um médico me disser que sofro de uma doença incurável, que vou sofrer imenso, que não há cura possível, será que tenho de me sujeitar aos cuidados paliativos contra a minha vontade? Ser ligado a um ventilador e viver com morfina e soro, como se fosse um ratinho branco de laboratório, ou não deveria eu, se completamente esclarecido e mentalmente capaz de decidir sobre o meu destino, poder opinar sobre se queria continuar a viver dessa forma ou abreviar um sofrimento inevitável?

Será que alguma vez teremos coragem de encetar este debate?

Ao que parece, em países mentalmente muito além da nossa mesquinhez - continuamos a sofrer a atrofia da Igreja Católica que, mesmo perante a presença de doenças infetocontagiosas mortais, nega o uso do preservativo e opõe-se ao aborto, inclusive em caso de violação da mulher, quanto mais nestas questões! - Estes assuntos estão há muito debatidos pela sociedade e devidamente legislados.

Não defendo os "doutores da morte", nada disso. Apenas acho que, em situações limite, deveria poder caber ao doente, ou à família mais próxima, caso este já não possa decidir, a escolha entre antecipar o seu final ou padecer tormentos inevitáveis.

Devia existir um "testamento vital", um instrumento jurídico apto a podermos, desde já, fazer as nossas escolhas sobre tais assuntos, isto enquanto estamos lúcidos, sãos e com capacidade de decidir, sobre qual a atitude que desejaríamos que fosse tomada quanto a nós numa dessas situações. 

Jorge Rebelo

1 comentário:

  1. Totalmente de acordo, muito embora entenda a reserva do legislador nestas matérias tão sensíveis. Foi assim também com a IVG que durante anos foi discutida, debatida, contraditada, defendida, amadurecida suficientemente para se legislar sobre ela de forma que pudesse considerar-se socialmente aceite.
    E creio que é o caminho mais acertado também no que concerne estas qüestões. A lei tem que acompanhar o sentimento social dominante, e quando se trate de temas polêmicos por regra levados ao debate por minorias sociais e ideológicas há que percorrer um caminho de debate e reflexão que conduza a um mínimo de esclarecimento e aceitação social. Só assim a lei exerce a sua função de pacificação social, porque dotada de um bônus iuris que mesmo os discordam dela não deixam de reconhecer-lhe.

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Às vezes penso

Às vezes penso que não há chuva que me chegue, momentos que me bastem, nem sequer recordações de risos que me preencham. Por outras palavras...